Variedade expressiva na literatura agrária romana: descrições anatômicas e preceituações veterinárias no livro III das Geórgicas de Virgílio e no livro VI do De re rustica de Lúcio Júnio Moderato Columela
Neste artigo, desejamos comparar os modos de Columela e Virgílio escreverem as descrições anatômicas dos animais e algumas prescrições veterinárias em excertos precisos de De re rustica, VI e Geórgicas, III. Assim, enquanto o primeiro autor, compondo no interior da tradição dos antigos tratados em prosa, privilegia a informatividade, Virgílio optou por realizar os mesmos processos textuais, sobretudo, elaborando-os expressivamente.
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Trevizam, M. «Variedade Expressiva Na Literatura agrária Romana: Descrições anatômicas E preceituações veterinárias No Livro III Das Geórgicas De Virgílio E No Livro VI Do De Re Rustica De Lúcio Júnio Moderato Columela». Nova Tellus, vol. 36, n.º 1, mayo de 2018, pp. 65-100, doi:10.19130/iifl.nt.2018.36.1.785.
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Biografía del autor/a
Matheus Trevizam, Universidade Federal de Minas Gerais
bacharel e licenciado em Letras pelo IEL-Unicamp(Campinas, Brasil) e mestre e doutor em Linguística pela mesma Instituição. Realizou estágio pós-doutoral em Literaturas Clássicas na Universidade de Paris IV/Sorbonne, entre 2011 e 2012, como bolsista da capes (Governo Federal do Brasil). Desde 2006, leciona Língua e Literatura latina na Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, Brasil), nos níveis de graduação e pós-graduação, sendo atualmente professor associado nessa Instituição. Traduziu para o português Varrão (Das coisas do campo, 2012 –obra finalista do “Prêmio Jabuti” em 2013) e Catão (Da agricultura, 2016). É autor de Poesia didática: Virgílio, Ovídio e Lucrécio (2014) e Prosa técnica: Catão, Varrão, Vitrúvio e Columela (2014), obras publicadas pela Editora da Unicamp.
Citas
Fontes e comentário
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1. Introdução
Muito se enganaria quem pretendesse ver nos textos representativos da chamada “literatura agrária” dos romanos antigos um corpus identificado com a mera monotonia expressiva. De início destacamos que, dada a própria pertença de muitos textos a essa variedade compositiva da Antiguidade, é natural que os estilos de escrita característicos da maneira de cada autor comunicar os conteúdos técnicos acabem adentrando suas obras como um fator de diferenciação. Então, se falamos no pioneiro Catão, o Velho, com seu De agri cultura (séc. III-II a. C.), ali já se divisa um manual agrícola dotado de traços de escrita sui generis: atesta-o a marcada preferência do autor por servir-se de frases curtas e diretas, em geral não muito complexas sintaticamente, de numerosos verbos no imperativo, ou outras formas jussivas, de seguidas repetições e de um modo expressivo bastante concreto, em geral alheio a abstrações e pontos sem estreito contato com as realidades camponesas que evoca.1 Esse “agrônomo” romano também se destaca, desde o proêmio de De agri cultura, por estabelecer-se como decisivo defensor do modo de vida tradicional dos maiores populi Romani, o qual não podia prescindir de suas raízes camponesas para o embasamento de uma existência laboriosamente austera,2 além de pouco afim aos luxos urbanos e aos “falsos atrativos” advindos com a expansão de Roma.3
O caráter francamente rude do estilo catoniano encontra um contraponto já nos Dialogi rerum rusticarum de Varrão de Reate (séc. I a. C.), cujo modo de elaborar a linguagem causou estranheza a mais de um filólogo. De um lado, então, veem-se nessa obra usos linguísticos até certo ponto desviantes do padrão da prosa romana clássica, os quais fizeram E. de Saint-Denis4 mesmo aventar influências do “latim falado” em sua composição:
Alguns dos meios expressivos, deste modo, considerados como caracterizadores da coloquialidade no De re rustica por Saint-Denis (p. 144 et seq.) correspondem, por suas indicações, às elipses de substantivos (a quarta ad decimam, s.-e. horam – II, XI, 9); às redundâncias (riuolus tenuis – III, V, 11); às silepses de número (familia... si fessi – I, XIII, 1); à facilidade de recorrência ao ablativo de “lugar onde”, não preposicionado (monte Tagro = in monte Tagro 63 – II, I, 19); à frouxidão no emprego das regras da correlação dos tempos da gramática latina [maxime institutum (est) ut castrentur equi, em vez do “mais gramatical” maxime institutum (est) ut castrarentur equi – II, VII, 15]; à substituição do gerundivo pelo gerúndio (in supponendo oua, em vez do “mais gramatical” in supponendis ouis – III, IX, 12)...5
De outro, Jacques Heurgon ressaltou, em duas ocasiões distintas, a presença de um certo esforço retórico nos modos de escrita varronianos,6 além da relativa parcimônia do autor no emprego das repetições – algo em direto contraste com os hábitos de Catão, o Velho, ao elaborar o De agri cultura –,7 das personificações, dos muitos e difundidos jogos de palavras8 e da atribuição de relevância aos termos, mais de uma vez elucidados por glosas ou etimologias, segundo procedimentos “filológicos” que ele também seguira, a saber, em seu De lingua Latina.9 Se formos atribuir crédito conjunto às palavras desses dois estudiosos modernos, então, poderemos ver na escrita do Varrão dos Dialogi rerum rusticarum uma espécie de mescla entre as “espontaneidades” do latim coloquial e as tentativas de estilização comentadas por Heurgon, a que se unem o humor e os cuidados com o léxico agrícola.
Em que pesem as diferenças de ordem estilística ou estruturante entre o De agri cultura catoniano e esses Dialogi rerum rusticarum de Varrão, no entanto, poderíamos estabelecer alguma aproximação de ideias entre tais textos na medida em que o segundo autor aludido foi proprietário de terras na Itália e também soube mostrar-se defensor da vida rural, tendo chegado, inclusive, a contrapô-la aos “males” coevos, similarmente a Catão.10 Uma passagem bastante ilustrativa desse tipo de mentalidade nos Dialogi rerum rusticarum de Varrão se identifica com o proêmio do livro II, em que o autor declara terem preferido “grandes homens, nossos ancestrais, os romanos do campo aos da Cidade”:11 com efeito, enquanto se ocuparam majoritariamente de suas terras, tais homens “lograram duas coisas, possuir os mais fecundos campos cultivando e serem eles próprios de melhor saúde, sem acharem falta dos ginásios urbanos à grega”.12
Ainda se faz necessário, quando tratamos da riqueza das possibilidades de efetiva realização letrada das obras romanas de “agronomia”, referir que tais textos foram compostos sob mais de um “molde” genérico possível. Assim, a partir das tentativas embrionárias do supracitado De agri cultura – na verdade, ainda um simples e mais ou menos desconexo manual, ou coleção de rubricas atinentes às práticas rústicas dos tempos de Catão –,13 começou a implantar-se em Roma a tipologia do tratado, a qual já tivera, nas letras gregas, importantes desdobramentos, como é o caso da rica produção aristotélica e de outros escritores em prosa.14
Ora, embora seja difícil definir formalmente o que circunscreve um tratado, com muita frequência observamos, nas letras antigas, que as obras vinculadas a essa tipologia corresponderam a textos de razoável extensão e dedicados à abordagem de algum saber ou técnica humana específica (retórica, agricultura, arquitetura, direito, aritmética etc.). Além disso, são obras construídas em prosa e com a subdivisão do todo da matéria, amiúde, ao longo de sucessivos livros mais ou menos especializados, por vezes tendo ao(s) início(s) um prooemium, em que os autores dão vazão às funções típicas para tal parte introdutória dos discursos (como à dedicatória, à captatio beneuolentiae15 e à apresentação sucinta do tema a ser tratado no livro particular que começam).
O próprio De re rustica columeliano se encaixa nessa definição sumária, bem como o posterior Opus agriculturae, do “agrônomo” tardio Rutílio Tauro Emiliano Paládio (séc. IV d. C.), com o “senão” de que, bem o sabemos, o décimo livro da obra de Columela foi composto sob a forma de um poema didático à imitação das Geórgicas de Virgílio, e como espécie de cumprimento de uma tarefa delegada aos pósteros por esse vate.16 Então, em conformidade com os ditames construtivos básicos da forma tratadística antiga, observamos que tanto esse De re rustica quanto o Opus sobretudo se concentram, ao longo de sua considerável extensão, em expor dados técnicos sobre a agropecuária,17 no último caso dispostos em parte sob a curiosa forma de um calendário anual de atividades rústicas.18 Os dois autores envolvidos na respectiva escrita de cada um desses textos, ainda, adotaram majoritariamente a prosa para compô-los, apesar da obediência a parâmetros estilísticos diversos;19 mais de um livro do tratado columeliano, enfim, conta com a prática da disposição proemial em seu início.
Não há, porém, que restringir a tal tipologia a realização efetiva de todas as obras que consideramos, por critérios temáticos, inseridas no âmbito dos escritos agrários romanos. Os próprios Dialogi rerum rusticarum de Varrão, dessa forma, obviamente se caracterizaram pela adoção dos ditames do gênero dialógico da literatura clássica, manifestando maior proximidade, ainda, com a espécie aristotélica de tal modo de compor.20 Isso justifica que grosso modo divisemos nessa obra a presença de várias personagens – como o próprio Varrão, Fundânio, seu sogro, e o “agrônomo” Tremélio Escrofa – a interagirem em “conversas” sobre temas de agropecuária, ocorrendo que cada uma delas toma a palavra para pronunciar-se longamente a respeito de uma sua especialidade rústica e o faz até ter “esgotado” o assunto, antes de passar o turno à seguinte.
Por sua vez as Geórgicas – de cujo livro III nos ocuparemos, em parte, ao longo dos subitens seguintes do artigo, junto com excertos do livro VI do De re rustica columeliano –, retomam a longínqua tradição compositiva que fizera do Hesíodo d’Os trabalhos e os dias, não da Teogonia,21 o “pai” da poesia didática antiga. Então, repercutindo até certo ponto importantes traços definidores daquela obra inserida nos tempos arcaicos da cultura grega, o poeta romano fez de Mecenas (não de Perses) seu aluno intratextual de agropecuária; mesclou quadros mítico-narrativos em meio aos estritos preceitos técnicos;22 soube imprimir dimensões mais vastas que a das meras contingências da vida rústica às reflexões que veicula no texto;23 serviu-se do mesmo metro (hexâmetro datílico) e de várias imagens já presentes em Os trabalhos e os dias etc.24
Não obstante sua clara opção por afastar-se da forma tratadística, Virgílio (também ele de origens rurais na Gália Cisalpina) representa uma espécie de elo de continuidade na linhagem de “agrônomos” latinos que se inicia com Catão, passa por Varrão de Reate, chega às Geórgicas e, depois, culmina no monumental tratado columeliano. Com efeito, uma célebre passagem do poema, a das Laudes ruris que se encontra entre vv. 458-574 do livro II, destina-se a enaltecer, de maneira deliberadamente contrastiva,25 o modo de vida rural diante dos “vícios” urbanos (violência desmedida, cobiça, gosto pelo luxo...). Nesse contexto não falta, inclusive, a lembrança de que os “velhos sabinos” (ueteres... Sabini , v. 532), povo associável na Antiguidade à rudeza de uma região tradicionalmente agrícola e a importante grau de pietas,26 viveram um dia como os honestos agricolae coevos.
Embora, como já notaram os críticos, a refinada tessitura poética das Geórgicas, a que se agregam elementos de caráter não apenas técnico, mas também filosófico, moral, religioso etc., faça-nos pressupor um público original de leitores urbanos e eruditos para o poema (por vezes, relativamente distanciados da verdadeira realidade da lida campesina),27 não deixa de ser plausível a interpretação dessa obra como uma espécie de convite às elites de Roma28 para que não se descaracterizem diante das mudanças confrontadas pela sociedade da época augustana. Dessa maneira, dados que se disseminam ao longo das quatro Geórgicas – como o supracitado exemplo da aproximação entre a rusticidade dos sabinos e uma espécie de Idade áurea – fazem-nos compreender que Virgílio, possivelmente, ainda divisava no respeito dos poderosos de Roma às tradições dos avós, as quais desde há muito os pressupunham atentos ao aspecto agrário da vida social,29 sobretudo um caminho de sanidade moral para a pátria.
Nossos intentos na sequência destas análises, em vista do exposto, vincular-se-ão justo a demonstrar, inclusive devido à diversa estruturação genérica do De re rustica e das Geórgicas, que as descrições anatômicas, tal como conduzidas por um e outro autor, diferem em seus procedimentos e objetivos, o mesmo se dando com certas passagens de preceituação terapêutica para os animais doentes. Nesse percurso, mais uma vez, corroborante da considerável variabilidade expressiva da literatura agrária romana, não nos eximiremos de apontar alguns detalhes que particularizam a tessitura linguística dos trechos de Columela e Virgílio postos em cotejo.
2. Análises comparativas da abordagem temática sobre os animais em Virgílio e em Columela
2.1. Cotejo de descrições anatômicas de animais no livro III das Geórgicas e no livro VI do De re rustica de Columela
Antes de procedermos às análises comparativas cabíveis para este subitem, parece-nos necessário situar brevemente os respectivos livros de Virgílio e Columela no interior das obras em que se inserem, bem como lembrar algumas de suas características. Assim, o livro III das Geórgicas caracteriza-se por abrir a seção zoológica desse “poema da terra” de Virgílio, pois o livro IV finaliza a obra com a cobertura teórica ao assunto da apicultura, e os dois do início versam do cultivo de grãos (I) e da arboricultura (II). Quando mencionamos internamente o livro III, por outro lado, tem-se, depois de um longo e complexo proêmio, a divisão da sequência do texto entre três partes distintas, as quais se separam por um novo “segundo proêmio” entre vv. 284-294: assim, de v. 49 a v. 283, o poeta explica os processos necessários para a criação de bois e cavalos; entre v. 295 e v. 439, ele basicamente se desdobra nos preceitos sobre a criação de ovinos e caprinos; entre vv. 440-566, o foco geral são as doenças dos animais, sejam elas de algum modo remediáveis (vv. 440-473), seja em sua variedade identificada com a avassaladora Peste do Noricum (vv. 474-566).
Como já esboçamos a estrutura aproximada do tratado de Columela na nota 18, mencionando a sucessão temática de suas partes, basta-nos aqui acrescentar que, enquanto o livro VI se vincula ao assunto pecuário dos animais ditos “de trabalho” pelo autor (ou seja, bois – cap. I-XIX –, touros – cap. XX –, vacas – cap. XXI-XXIV –, bezerros – cap. XXV-XXVI –, cavalos – cap. XXVII-XXXV – e mulas – cap. XXXVI-XXXVIII), o livro VII focaliza-se naqueles que ele diria “de prazer, lucro e guarda” (depois de passar com muita brevidade pelos burros – cap. I –, as ovelhas – cap. II-V –, caprinos – cap. VI-VII –, porcos – cap. IX-X – e cães – cap. XI-XIII).30 Note-se como, apesar da repartição columeliana da pecuária entre esses dois livros, ele se mantém curiosamente próximo de um padrão de dispor as espécies que já fora o de Virgílio, pois também em sua obra surgem primeiro os animais de tamanho maior, para depois serem tratados os menores. O livro VIII do De re rustica de Columela, por sua vez, aborda um tema – o das criações de aves e peixes nas imediações da uilla rustica, a sede das propriedades rurais antigas – que não encontra acolhida nas Geórgicas, a não ser aproximadamente, pelas abelhas do livro IV: trata-se, neste caso, de mais uma demonstração da conhecida “seletividade” virgiliana,31 como se o poeta tivesse querido poupar seus leitores (de uma obra, no fundo, literária) da demasiada concentração em numerosos assuntos técnicos.
2.1.1. Análise comparativa entre Geórgicas, III, 49-59 e De re rustica, VI, I, 2-3 – VI, XXI, 1
A principal passagem de “anatomia” das Geórgicas que propomos para o cotejo com as outras de Columela, postas abaixo, corresponde a estes versos, em que o poeta comenta os “bons” traços físicos esperados de uma vaca:
Seu quis Olympiacae miratus praemia palmae pascit equos seu quis fortis ad aratra iuuencos, 50 corpora praecipue matrum legat. Optima toruae forma bouis, cui turpe caput, cui plurima ceruix et crurum tenus a mento palearia pendent; tum longo nullus lateri modus; omnia magna, pes etiam; et camuris hirtae sub cornibus aures. 55 Nec mihi displiceat maculis insignis et albo aut iuga detrectans interdumque aspera cornu et faciem tauro propior quaeque ardua tota et gradiens ima uerrit uestigia cauda.32
Quae cum tam uaria et diuersa sint, tamen quaedam quasi communia et certa praecepta in emendis iuuencis arator sequi debet; eaque Mago Carthaginiensis ita prodidit, ut nos deinceps memorabimus. Parandi sunt boues nouelli, quadrati, grandibus membris, cornibus proceris ac nigrantibus et robustis, fronte lata et crispa, hirtis auribus, oculis et labris nigris, naribus resimis patulisque, ceruice longa et torosa, palearibus amplis et pene ad genua promissis, pectore magno, armis uastis, capaci et tamquam implente utero, lateribus porrectis, lumbis latis, dorso recto planoque uel etiam subsidente, clunibus rotundis, cruribus compactis ac rectis, sed breuioribus potius quam longis, nec genibus improbis, ungulis magnis, caudis longissimis et setosis, piloque corporis denso breuique, coloris robii uel fusci, tactu corporis mollissimo.33
Vaccae quoque probantur altissimae formae longaeque, maximis uteris, frontibus latissimis, oculis nigris et patentissimis, cornibus uenustis et leuibus et nigrantibus, pilosis auribus, compressis malis, palearibus et caudis amplissimis, ungulis modicis, et modicis cruribus. Cetera quoque fere eadem in feminis, quae et in maribus, desiderantur, et praecipue ut sint nouellae, quoniam, cum excesserunt annos decem, foetibus inutiles sunt. Rursus minores bimis iniri non oportet.34
Contextualmente, os versos citados se encaixam em parte do livro III que diz respeito a aspectos reprodutivos, pois Virgílio inicia o trecho falando na importância de escolher com cuidado os corpos das fêmeas caso se desejem bons corcéis de corrida ou, sobretudo, “bezerros fortes para os arados” (v. 50). Afinal, como ele próprio registra em outra passagem desse mesmo livro, as características dos pais “passam” a seus filhos,35 de modo que não seria prudente destinar a reprodutora uma matriz qualquer.
Ora, são precisamente características de vigor (e fartura!) que o poeta opta por ressaltar em sua descrição da vaca reprodutora, como se nota, por exemplo, pela referência ao tamanho avantajado de mais de uma parte anatômica. Assim, o “colo” é “farto” (plurima ceruix, v. 52), “a papada pende do mento até as pernas” (crurum tenus a mento palearia pendent, v. 53), não há “nenhum limite para o flanco alongado” (longo nullus lateri modus, v. 54), “tudo é grande, mesmo a pata” (omnia magna, / pes etiam, vv. 54-55), e ela “apaga os rastros com a ponta da cauda ao caminhar” (gradiens ima uerrit uestigia cauda, v. 59). O detalhe da cauda que “apaga” os rastros quando o animal caminha, evidentemente, só pode vincular-se a ser ela bastante longa, pois, de outro modo, isso sequer seria concebível.
Determinados aspectos dessa mesma descrição virgiliana, que se descobre não só anatômica, por outro lado, fazem-nos ver como o poeta também quis destacar no ser aqui focalizado certos traços afins à violência e, até, a alguma falta de graciosidade. Então, a vaca é torua (“de olhar ameaçador”, v. 51), “rejeita os jugos” e mostra-se, “por vezes, rude com o chifre” (iuga detrectans interdumque aspera cornu, v. 57); além disso, tem “a cabeça feia” (cui turpe caput, v. 52), “orelhas eriçadas sob os chifres voltados para dentro” (camuris hirtae sub cornibus aures, v. 55)36 e é “um tanto parecida com o touro na aparência” (faciem tauro propior, v. 58), atributos, julgamos, não muito afins à delicadeza das formas. Por sua vez, dizer tal vaca ideal “de manchas brancas” (maculis insignis et albo, v. 56) e “altiva” (ardua, v. 58) atribui-lhe, de um lado, a característica de um ser “marcado”37 pelo traço peculiar das malhas e, de outro, de não corresponder à plena docilidade.
Assim divisado com o conjunto dos atributos de que o dota Virgílio, esse animal assume, portanto, contornos gerais atinentes a um tamanho respeitável, à relativa indisciplina ou falta de docilidade, a um tipo físico mais vigoroso que belo, à não muito sutil distinção de si (insignis) etc. Como consideramos, trata-se de características recomendáveis, pela preceituação de Virgílio, na medida em que esse tipo de animal se destina a dar à luz (e nutrir) novilhos suficientemente fortes para enfrentar a dureza da lida quotidiana no fundus rusticus retratado pelo poeta.38 Assim, como tais novilhos necessitarão, por força, do maior vigor possível, não convém confiar sua nutrição e (meia) concepção a vacas de talhe muito miúdo, belas e bem feitas, mas sem energia e ímpeto, pacíficas em demasia diante dos obstáculos etc.
Apesar da grande expressividade dessa descrição em Virgílio,39 notamos algo que se poderia chamar de “defocamento” no modo como apresenta certos detalhes da vaca. Ele fala, assim, na vaga presença de um “olhar ameaçador” no animal (v. 51), não de concretos olhos que seriam, talvez, “escuros”, “fixos”, “brilhantes” etc.; também não compreendemos por qual razão sua cabeça seria “feia” (v. 52), pois os traços associáveis a essa deformidade não nos são apresentados de modo algum; por fim, ainda permanece algo encoberto sob que aspecto essa fêmea apresenta traços “um tanto parecidos com os do touro” (v. 58): seria somente por ter um corpo grande e robusto, como assinalamos? Por sinal, à diferença do Columela de livro VI do De re rustica, Virgílio não complementa nas Geórgicas a apresentação anatômica da fêmea da espécie bovina com aquela do macho, para que possamos nós próprios aprofundar nossas constatações nesse sentido.40
A observação dos trechos descritivos da anatomia dos bovinos no livro VI da obra de Columela revela algumas semelhanças com a passagem afim de Virgílio (mas, ainda, importantes diferenças). De início, nota-se que a valorização do tamanho avantajado e das partes bem desenvolvidas corresponde a algo muitas vezes presente no poeta didático e no tratadista agrícola: então, “colo farto” (v. 52), “papada pendente do mento até as pernas” (v. 53) e “flanco alongado” (v. 54) da descrição do primeiro encontram seus correlatos aproximados, por exemplo, nos “enormes ventres”, “testa bem larga” e “papadas e caudas bem amplas” do segundo (VI, XXI, 1). Destacávamos ainda, em Virgílio, a preocupação com a escolha de uma vaca cuja conformação anatômica/ condições físicas a tornasse, potencialmente, boa reprodutora. Em Columela, ao fim da segunda passagem descritiva de De re rustica que citamos neste subitem, também se fazem considerações de ordem similar, sugerindo ele que uma vaca não jovem (com mais de dez anos) não se presta mais a gerar e parir, enquanto uma não madura (com menos de dois) não se presta ainda para as mesmas “tarefas”.
As marcadas diferenças entre um e outro autor, no entanto, começam pelo próprio nível de detalhamento da descrição columeliana. Evitando restringir nossas presentes observações à aridez de critérios analíticos meramente quantitativos, é um fato que a possibilidade de sobrepormos, em Columela, os traços físicos das fêmeas aos dos machos (bois), como descritos pelo “agrônomo” no livro VI do De re rustica, dá-nos o ensejo de dispor de um feixe de traços, concernentes à vaca, bem mais amplo que o de Virgílio.
Tal sobreposição, de modo algum descabida porque a ela nos convida o próprio Columela,41 permite-nos aventar que também a vaca teria certas partes físicas semelhantes às do boi, como “lábios” (negros), “focinho” (arrebitado e largo), “colo” (comprido e musculoso), “peito” (avantajado), espáduas (“amplas”), “ventre” (espaçoso e com aparência de grávido), “flancos” (estendidos), “lombos” (vastos), “dorso” (reto e plaino ou mesmo rebaixado), “ancas” (arredondadas), “joelhos” (não disformes) e “pelo do corpo todo” (denso e baixo, de cor avermelhada ou escura), embora não citadas para si, mas em princípio a caracterizarem o macho ideal, segundo o autor. A propósito, veja-se que, resguardadas algumas exceções,42 o cotejo de qualidades concernentes a partes descritas para os dois sexos, muitas vezes, leva-nos a divisar traços em relativa partilha. Assim se dá, por exemplo, além dos chifres citados há pouco, por sua característica da cor comum (escura), ao menos com as orelhas, “eriçadas” (hirtae) ou “peludas” (pilosae) conforme tratemos de machos ou fêmeas, e com as caudas, “bem longas (e felpudas)” [longissimae et (setosae)] para o boi, “bem amplas” (amplissimae) para a vaca.
Desse modo, mesmo as partes não descritas para a vaca, segundo dizíamos, contam com grande probabilidade, ao considerarmos a coincidência morfológica entre mais de uma descrita para o macho e a fêmea, de serem em grande medida parecidas nos dois sexos, o que aumenta substancialmente o espectro de pontos sob os quais podemos “observar”, decerto com mais detalhes do que em Virgílio, a rês columeliana em pauta. Columela, por outro lado, ainda nos parece organizar um pouco melhor que esse poeta a dispositio, ao apresentar no texto os elementos corpóreos das reses: note-se, então, que o tratadista, mais de uma vez, faz com que se sucedam em sua(s) listagem(s) muitas partes físicas situadas em real proximidade e sequência, não aleatoriamente. Isso se dá com os vários elementos da cabeça do boi, descritos dos chifres ao focinho e seguidos da papada (ou do colo) e do peito; também com seu flanco (com “intercalação” do dorso), lombo, ancas, pernas, joelhos e cascos, caso pensemos em uma menção direcionada aos membros traseiros; enfim, com a própria vaca, quanto às partes referidas em sua cabeça (testa, olhos, chifres, orelhas e maxilas) ou junto dela (papada). A cauda, enfim, sempre corresponde, no macho e na fêmea, a um ponto citado entre os derradeiros, depois dos inícios aproximadamente comuns por partes situadas sobre a cabeça, como se a descrição de Columela percorresse as reses da porção dianteira para a traseira.
Apesar de essa última característica descritiva também se encontrar em Virgílio – vejam-se, respectivamente, a “cabeça feia” (turpe caput, v. 52) e a “ponta da cauda” (ima... cauda, v. 59) –, ele parece não ser tão sistemático e detalhista ao concentrar ou fazer com que se sigam elementos anatômicos em proximidade, pois, embora a cabeça da vaca que descreve seja sucedida pelo “colo” de v. 52 (ou pela “papada” de v. 53), depois se veem “flanco” (latus, v. 54), “chifres” (cornua, v. 55), “orelhas” (aures, v. 55), e “cauda”, como se houvesse, ao mesmo tempo, sensível quebra sequencial a partir de “papada” e um inesperado “retorno” a duas partes omitidas – chifres e orelhas – da porção dianteira do bicho, antes de se finalizar o todo pelo rabo.
Em contrapartida, não se nota a mesma riqueza expressiva de Virgílio nas passagens de Columela que abordam os bovinos. A observação dos dois trechos descritivos do boi e da vaca, nesse autor em prosa, revela-nos que ele fez sua opção pela monotonia, com marcada presença da estrutura chamada, em latim, “ablativo de qualidade”, através da qual se enuncia, explicam-nos os gramáticos, “a particularidade passageira ou durável de um indivíduo”.43 Apenas, como revela a leitura seguida do todo dessas descrições columelianas, (1) a eventual troca de posição do adjetivo componente, com um nome, dos sintagmas postos no caso ablativo, nos termos que enunciamos, permite algum rearranjo estilístico elementar pelo tratadista, sem esquecermos também das vezes em que as qualidades se ligam diretamente aos substantivos flexionados em outros casos (como o nominativo), (2) complementando-os em função de adjunto:
De todo modo, esse autor prosístico nitidamente privilegia mais, nas descrições que elabora, a face informativa e organizacional da linguagem,46 em detrimento de aspectos como a beleza expressiva e o “colorido” de exposição dos temas, à maneira de Virgílio.47 A continuidade de semelhantes maneiras de proceder em um e outro autor, por sinal, constitui um indício importante das diferentes funções da escrita do De re rustica e das Geórgicas por seus autores, as quais, têm assinalado leitores atentos, parecem respectivamente vincular-se antes à instrução do público48 e a seu deleite.49
Sobre esse mesmo tópico da configuração das descrições de animais nos antigos autores de “agronomia”, interessa ainda observar que a presença de pressupostos semelhantes aos de Columela (precisão, uso de procedimentos metódicos ao expor, detalhismo...) já em um Varrão de Reate, autor dos três supracitados Dialogi rerum rusticarum, aponta para os vínculos de ambos com uma espécie de padrão recorrente dos escritos agrários em Roma. Segundo esse padrão, muito embora os tratados, ou outras “sérias” formas de expor em prosa a “agronomia” antiga, não eliminem de seus horizontes todas as preocupações artísticas, como dissemos na introdução,50 servem-se seus autores da escrita, sobretudo, com fins informativos do público. Por isso, justifica-se o eventual privilégio de um traço como a intensificação dos esforços ao comunicar-se tecnicamente, algo talvez cansativo, mas eficaz sob o ponto de vista da real exaustividade na transmissão de saberes.
Desse modo, em outra ocasião analítica, comparando não Columela e o Virgílio das Geórgicas, mas sim o diálogo ciceroniano do Cato Maior com certas descrições zoológicas contidas no Varrão dos Dialogi rerum rusticarum (II, IX, 3-5), enfatizamos precisamente o aspecto do maior detalhamento dessa última obra,51 como se os elementos de ruralidade daquele diálogo do Arpinate (cf. par. 24-25 e 51-60) não contivessem, de fato, propósitos instrutivos técnicos, servindo apenas de incitação moral à vida agrícola. A atenção a minúcias, por outro lado, constituíra uma marca também do De agri cultura de Catão, em que divisávamos, sobretudo em determinados capítulos altamente técnicos (XVIII – edificação da sala de prensagem de azeitonas; XXII – instalação do triturador de azeitonas no fundus rusticus etc.), grande abundância de dados, com discriminação de vários tipos de peças a serem combinadas, sucessivas operações de ajuste de partes, muitas medidas e proporções...52 Ainda, sob o aspecto propriamente estilístico, os críticos também têm muitas vezes notado a presença partilhada de certos traços de arcaísmo expressivo nas respectivas obras agrárias de Catão (Till 1968, p. 15), Varrão (Diederich 2005, p. 279) e Columela (Diederich 2005, p. 282), o que, sem dúvida, ajuda a harmonizar o tradicionalismo dos temas dessas obras com aquele de sua linguagem.
Derradeiramente, importa acrescentar que o “desfocamento” virgiliano nas Geórgicas, ou a falta de absoluta precisão descritiva (e preceituadora) desta obra, não se deve, absolutamente, a algum intrínseco “defeito” da forma da poesia didática para comunicar conteúdos com rigor. O caso típico da grande eficácia de Lucrécio ao expor rigorosa e imageticamente os arcanos da física epicurista em De rerum natura, por sinal, demonstra-nos que a poesia, longe de constituir um obstáculo para o sucesso da informatividade, pode conspirar a favor desse mesmo objetivo.53 Isso significa que, aqui, vemo-nos diante de uma deliberada opção de Virgílio por vincular-se a peculiares possibilidades expressivas da poesia didática, as quais não dizem respeito, exatamente, ao efetivo privilégio formador do público, mas antes, nos termos de Thibodeau, a seu refinado “encantamento”.54
Dessa maneira, associando-se a uma linhagem de poetas didáticos não tão comprometidos com a exposição de todo acurada dos temas ostensivos de suas obras – sejam eles a agricultura, a toxicologia, os animais peçonhentos etc. –,55 Virgílio pôde optar, o que seria inconcebível para um tratadista digno deste nome, por apenas “mascarar-se” como um bom instrutor agrário. Nesse sentido, a escolha da mais “fluida” categoria compositiva da poesia didática para construir seu “poema da terra” acabou por dotá-lo de um grau de liberdade e distanciamento diante dos objetos inseridos no mundo rural, ou da própria função “educadora”, impensável para autores como Columela ou Paládio, dos quais se esperou, pelo próprio nível de seriedade inerente à forma tratadística, não tanto a tessitura de complexos jogos literários, mas sim a verdadeira eficácia instrutiva sobre conteúdos técnicos.
2.2. Cotejo de prescrições veterinárias no livro III das Geórgicas e no livro VI do De re rustica de Columela
Neste subitem de análise do artigo passaremos, do exame dos processos descritivos de animais, realizados pelo Virgílio das Geórgicas e por Columela, em De re rustica, VI, a considerar como esses autores, diante da nefasta realidade das doenças que atacam as manadas e rebanhos, posicionaram-se a fim de recomendar-lhes o combate. Acreditamos em que semelhante variação de direcionamento de olhares possa ajudar-nos a compreender melhor o significado da escrita “agronômica” do poeta didático e do tratadista, dadas as claras diferenças entre um e outro modo de proceder textual e discursivamente – descrever e preceituar – e as esperadas peculiaridades na maneira de condução dessa outra “tarefa” por cada escritor em pauta.
De início, então, lembramos que, enquanto cabe às descrições “fazer ver” um dado objeto ou operação da vida rústica, como se de um modo de “pintar com palavras” se falasse, as preceituações assumem função algo mais afim ao agir. Tratar-se-ia, no segundo caso, justo de dotar o leitor dessas obras de “agronomia” – em princípio, um “fazendeiro” (ou uilicus) capaz de assimilar com acuidade as palavras dos autores –56 de um conjunto de diretrizes indispensáveis para que conseguisse, pondo-as em prática, alcançar melhoras no modo como se portam determinados processos no fundus rusticus. Nesse sentido, então, enquanto o contato do público com uma descrição qualquer acaba por conduzi-lo, por definição, a um modo contemplativo de apreciar o texto, esse mesmo contato com preceitos faz por direcioná-lo, mais do que apenas a ver, em tese a apropriar-se de saberes com vistas a transpô-los da letra dos livros ao mundo concreto de suas efetivas operações como agente em meio agrário.
2.2.1. Análise comparativa entre Geórgicas, III, 441-469 e De re rustica, VI, XIII, 1 – VI, XXXII, 1-3
A passagem de Geórgicas, III que desejamos utilizar para a exemplificação dos mecanismos preceituadores mobilizados pelo magister didático nesse poema e seu posterior cotejo com as estratégias veterinárias de Columela dadas abaixo corresponde à que transcrevemos aqui:
Scabies extenuatur trito alio defricta; eodemque remedio curatur rabiosae canis uel lupi morsus, qui tamen et ipse imposito uulneri uetere salsamento aeque bene sanatur. Et ad scabiem praesentior alia medicina est. Cunila bubula, et sulphur conteruntur, admistaque amurca cum oleo atque aceto incoquuntur. Deinde tepefactis scissum alumen tritum spargitur. Id medicamentum candente sole illitum maxime prodest.58
Intertrigo bis in die subluitur aqua calida. Mox decocto ac trito sale cum adipe defricatur, dum sanguis emanet. Scabies mortifera huic quadrupedi est, nisi celeriter succurritur: quae si leuis est, inter initia candenti sub sole uel cedro uel oleo lentisci linitur uel urticae semine et oleo detritis uel unguine ceti, quod in lancibus salitus thynnus remittit. Praecipue tamen huic noxae salutaris est adeps marini uituli. Sed si iam inueterauerit, uehementioribus opus est remediis. Propter quod bitumen, et sulfur, ueratrum pici liquidae axungiaeque uetere mixta pari pondere incoquuntur, atque ea compositione curantur, ita ut prius scabies ferro erasa perluatur urina. Saepe etiam scalpello usque ad uiuum resecare et amputare scabiem profuit, atque ita factis ulceribus mederi liquida pice atque oleo, quae expurgant et replent uulnera. Quae cum expleta sunt, ut celerius cicatricem et pilum ducant, maxime proderit fuligo ex aeno ulceri infricata.59
Os versos virgilianos acima citados, como se nota pelo teor de seus próprios dizeres, encontram-se tematicamente em nexo, inclusive pela abordagem de um mal como a “sarna” (scabies, no original latino), com o tratamento dos animais de pequeno porte/ ovelhas. Acrescente-se que a única ocorrência externa a eles do termo scabies em todo o livro III das Geórgicas se encontra localizada em v. 299, num entorno compositivo de natureza profilática, pois o poeta avisa, ali, dos perigos da friagem para a pele dos animais. Esse mesmo aviso, note-se, é de certa forma retomado ao início do trecho citado – vv. 441-444 –, com acréscimo da adesão do suor aos corpos não lavados e das feridas causadas pelos espinheiros como fatores de risco para a mesma doença.
Os preceitos, propriamente, curativos correspondem, na dicção de Virgílio, a recomendar a submersão dos animais em água fresca – vv. 445-447 –, o emprego local da amurca, resíduo líquido de fabricação do azeite de oliveira e espécie de panaceia dos fundi rustici romanos – v. 448 –,60 a aplicação sobre a pele de um composto complexo, feito de “espumas de prata”, “enxofre vivo”, “pez do Ida”, “ceras viscosas”, “cebolas-albarrãs”, “heléboros fortes” e “negro betume”, como se lê entre vv. 449-451; enfim, a derradeira terapia recomendada para a scabies se identifica com algo, ao mesmo tempo, anunciado como mais eficaz e percebido como mais drástico no contato com o texto, vindo a corresponder à abertura de feridas a ferro sobre as partes atingidas (vv. 452-456). Não podemos deixar de notar, até esse ponto do percurso de oferecimento de preceitos veterinários pelo magister didático das Geórgicas, que as terapias dispostas ao longo de sua “fala” sucedem-se das mais para as menos suaves, iniciando-se com a delicadeza das águas puras, passando pela substância aquosa da amurca, ou pela loção odorífera a conter até enxofre e pez, e findando pela prática nada amena de “abrir a ferro a parte superior de uma ferida” (vv. 453-454).
Embora, a partir de v. 457, o poeta pareça trazer à tona outro tipo de doença, pois que se fala, então, de uma “dor advinda à medula dos ossos” (v. 457), de uma “febre seca” que “devora os membros” (v. 458) e até do comportamento estranho da ovelha que, entre outros sintomas, come sem vontade e torna tarde e só para casa, à noite (vv. 465 e 467), persistem as prescrições veterinárias, na verdade, bastante bruscas do fim da seção preceituadora sobre a scabies. Assim, a abertura das “partes inferiores da pata” é recomendada em vv. 459-460, como se se tratasse de um tipo peculiar de sangria, e recebe colorações étnicas ao ser aproximada das práticas dos “bisaltos”61 e do “duro gelono”,62 igualmente inclinados a ferir seus animais, porém para beberem “leite coalhado com sangue equino” (vv. 461-463).
O ponto extremo dessa via contínua de recrudescimento terapêutico, no entanto, é a preceituação do próprio sacrifício da rês doente (“reprime” – compesce, v. 468), como medida para evitar que o mal se espalhe também sobre outros animais. Trata-se de algo, por sinal, recomendado de maneira bastante enfática – pelo recurso à única forma de imperativo verbal63 de toda a passagem que transcrevemos –, o que significa que se produz, por esse mero detalhe, grande harmonização entre a “rudeza” do conteúdo e a forma de expressá-lo. Outro pormenor que não podemos omitir ao fim desse trecho diz respeito ao termo empregado por Virgílio para referir-se à doença que deve ser tão duramente extirpada, ou seja, culpa (v. 468), então se atribuindo sentidos francamente morais ao entorno, com a passagem da ovelha atingida de vítima a “culpada”, e devendo ela pagar com seu sangue pela “falta”.
A inserção desses versos que comentamos em um livro geórgico que se acaba tão dramaticamente com o episódio da Peste do Noricum (vv. 474-566), por outro lado, faz-nos cogitar que tal quadro de contínuo recrudescimento dos cuidados, como acabamos de expô-lo, de algum modo já sinaliza os horrores da Peste, pois essa também se vincula ao relato de eventos em nexo com os males dos rebanhos e, ademais, apresenta-os em uma escala crescente de horrores.64 Ainda, sem desejarmos propor que a scabies/ “sarna” ou a tal “febre” e as “dores” que custam a vida à ovelha do término sejam, na descrição de Virgílio, uma só doença, e identificada com a Peste do Noricum, deve-se no mínimo mencionar que sintomas de natureza cutânea,65 febre,66 falta de apetite67 e comportamentos bizarros68 também integram a complexa descrição dessa catastrófica mortandade.69 Assim, o conjunto de elos comuns entre tal passagem e a posterior contribui para atribuir à primeira o papel de um decisivo ponto de redirecionamento temático no fluxo dos conteúdos desse livro da obra.
De todo modo, os cuidados terapêuticos de natureza veterinária aqui recomendados por Virgílio parecem-nos antes corresponder a instrumentos de “ancoragem” temática do trecho em que se encontram no contexto maior do todo do livro III do que a verdadeiros e minuciosos preceitos para criadores de rebanhos, inclusive porque não se caracterizam pela plena exaustividade e sistematicidade expositiva. Estão ausentes dos conselhos virgilianos para controlar a scabies, sobretudo, quaisquer recomendações relativas às medidas dos ingredientes empregados para compor os remédios, bem como às circunstâncias determinadas de seu uso.70
É necessário acrescentar, ainda, que a beleza imagética da passagem, apesar do conteúdo imbuído de morbidez – veja-se a cena quase lúdica do carneiro sendo carregado pelas águas que o curarão da scabies, entre vv. 445-447, e o toque étnico da alusão aos povos bárbaros que se identificam com os bisaltos e o gelono, entre vv. 461-463 –, acrescida dos outros eventuais interesses que o trecho possa suscitar, como a “deixa” para um princípio de reflexão filosófica em vv. 451-456 (afinal, confiar nos deuses sem agir concretamente não funciona porque eles não são atuantes no mundo, com entendia Epicuro, ou porque operam até por intermédio do homem?),71 também contribui para o desvio do foco significativo essencial deste excerto do âmbito da mera preceituação veterinária.
No livro VI da obra columeliana, em contrapartida, o assunto do trato médico dos animais, sempre de grande porte, como explicamos acima ao enunciar a subdivisão geral dos temas ao longo desse tratado, assume importância fundamental. Basta dizer que, entre todos os tipos que têm cobertura nessa parte do De re rustica (ou seja, bois, touros, vacas, bezerros, cavalos e mulas), embora touros e vacas não recebam ênfase no aspecto do tratamento de suas doenças, os capítulos dedicados aos demais acolhem, muitas vezes, ampla gama de preceitos de ordem veterinária, visando ao cuidado de males bastante variados. Então, no tocante aos bois, os capítulos de número IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI, XVII, XVIII e XIX são dessa natureza;72 aos bezerros, os capítulos XXV e XXVI; aos cavalos, os capítulos XXX, XXXI, XXXII, XXXIII, XXXIV e XXXV; às mulas, o capítulo XXXVIII.73 Do total de trinta e oito capítulos desse livro, vinte e cinco, ou quase sessenta e seis por cento, ocupam-se de oferecer ao leitor conselhos de ordem veterinária.
Sobre um tópico médico como a scabies, que focalizamos nos trechos do De re rustica acima transcritos com fins de comentário, pois Virgílio também concentrou uma parte importante dos versos do intervalo de vv. 445-469 nesse assunto, importa dizer, por outro lado, que tais trechos não são os únicos tematicamente afins do tratado. Ainda nos capítulos III e XXXI, Columela menciona a mesma doença: na primeira vez, em um entorno de natureza alimentar e ao tratar dos bois, dando-se a entender que, caso esses animais não fiquem saciados quando se nutrem de bolotas, virão a desenvolver o problema;74 na segunda, em conjunto com o mal chamado impetigo (“impigem”) em latim, de modo que uma série de medidas, por vezes até semelhantes às que Virgílio já prescrevera no excerto visto há pouco do livro III das Geórgicas (cf. recomendações de emprego local de enxofre e pez e de raspagem das partes atingidas),75 se ofereça indistintamente com vistas a sanar essas duas anomalias cutâneas.
Já sob o ponto de vista da exaustividade, então, Columela destaca-se, no aspecto técnico, diante da exposição do tema dos tratamentos para a scabies tal como conduzidos pelo Virgílio das Geórgicas. Se considerarmos a menção à doença no capítulo III como mera referência de ordem profilática, pois ali o “agrônomo” apenas aconselha a alimentação em dose correta com as bolotas a fim de que o mal não surja, sem pronunciar-se em absoluto a respeito das medidas necessárias depois de ter-se instalado o problema, sobram-nos nada menos que três capítulos dedicados às terapias cabíveis caso ele já exista. Uma resposta possível para semelhante multiplicação, supostamente, do “mesmo” assunto ao longo do livro do De re rustica em questão diz respeito ao fato, como temos comentado, de nele se abordarem várias espécies animais em necessidade, inclusive, de eventual tratamento veterinário. Assim, imaginamos, embora um problema como a sarna possa afetar mais de uma espécie, com semelhante manifestação de sintomas e até causas, os tratamentos cabíveis para erradicá-la talvez não correspondam sempre aos mesmos para um boi ou um cavalo.
No tocante, especificamente, à “tessitura” textual e linguística dos trechos columelianos que transcrevemos, de início se nota que a preceituação é feita de modo bastante “polido”, ou seja, sem recurso aos imperativos verbais latinos e sua forma bastante incisiva de interação com o leitor. Alguns dos meios linguísticos possíveis para lograr esse efeito de polidez dizem respeito, por exemplo, ao emprego de verbos na voz passiva, os quais por vezes designam as operações indispensáveis para a boa resolução de doenças. Vejam-se, por exemplo, os casos abaixo:
Intertrigo bis in die subluitur aqua calida. Mox decocto ac trito sale cum adipe defricatur, dum sanguis emanet.77
Pelo teor desses preceitos, se a sarna “é diminuída ao ser esfregada com alho triturado”, subentende-se que isso é o que é preciso fazer para minorá-la sobre os bois; se as escoriações (dos cavalos) são lavadas “duas vezes ao dia com água quente” e, em seguida, esfregadas “com sal moído e cozido com gordura até que o sangue mane”, também não parece haver dúvidas a respeito do tratamento a seguir diante desse problema. Outro meio linguístico de conscientizar do que é bom (ou nocivo) para os animais rústicos corresponde ao emprego dos adjetivos adequados: sem haver necessidade de recorrência a imperativos ou outras formas jussivas quaisquer, dessa maneira, como Columela diz que ainda há “um remédio mais eficaz (praesentior – De re rustica, VI, XIII, 1) para a sarna” e passa a indicá-lo em seguida, o tratador de animais logo se inclina a servir-se dele; na outra passagem transcrita em corpo de texto, já que “faz bem78 para esse mal (a sarna) a gordura do golfinho”, compreendemos sem mais delongas ser recomendável seu uso em circunstâncias semelhantes.
O emprego de uma típica locução impessoal da gramática latina, caso de opus est79 em certo trecho da segunda passagem posta em corpo de texto (“há necessidade de80 remédios mais fortes” – De re rustica, VI, XXXII, 2), por sua vez, identifica-se com mais um modo de conduzir à ação sem demasiada ênfase no jogo de forças constituído pela “voz” de autoridade que emana do tratado e seu público. Devemos acrescentar que essa “delicadeza” do preceituador, como se antes apresentasse os caminhos a seguir sem quaisquer mecanismos bruscos de delegação de tarefas ao leitor, também se verifica em geral, exceção feita ao imperativo visto de v. 468, nos versos de Virgílio escolhidos para nosso comentário: note-se, desse modo, o recurso do poeta a um verbo impessoal de terceira pessoa do plural (perfundunt – “submergem” –, v. 446) e ao adjetivo de recomendação encontrável em v. 452 [(magis) praesens – “mais salutar”]. Em ambas as circunstâncias, como se trata de medidas enunciadas pelo magister agrário do texto e subentende-se, ao menos no plano imaginário constituído pelo universo ficcional das Geórgicas, que poderiam ser aplicadas com algum grau de eficácia, cumpre-se a função preceituadora das passagens, no sentido de se moverem os discipuli a agir como prescrevem.
Semelhante posicionamento em “igualdade” do fazer preceituador de Virgílio e de Columela não deve mascarar o fato de que, no segundo caso, divisamos a inserção dos conselhos terapêuticos aos animais no interior de uma obra efetivamente técnica, ou seja, que se espera bastante funcional diante das demandas práticas dos rústicos. Isso explica, além da maior exaustividade columeliana na cobertura ao assunto da scabies para as espécies bovina e equina, ao menos – lembremos que, em Virgílio, os conselhos para tratar da doença em princípio se referem aos meros cuidados com ovelhas –, a presença nos preceitos do tratadista de certos detalhes de todo omitidos pelo poeta. Tal é o caso do aconselhamento específico, em De re rustica, VI, XIII, 1, do uso de orégano-de-vaca e enxofre (que se misturam à amurca com azeite, vinagre e alúmen triturado), havendo o detalhe de ser o remédio, contudo, “extremamente eficaz ao friccionar-se quando o sol está quente”. Por outro lado, em De re rustica, VI, XXXII, 1-3, Columela fala no emprego de uma certa medida “duas vezes ao dia” e, em seguida, diferencia duas receitas de proveito contra a scabies, caso ainda esteja no começo ou caso já se tenha fortemente aderido à pele...
No tocante ao aspecto fundamental das medidas dos ingredientes medicamentosos, embora o teor das prescrições columelianas não nos pareça, aqui, de todo rigoroso – pois não se fala em quaisquer unidades de peso e volume nem, sequer, em números indicativos das quantidades a serem empregadas –, ao menos o tipo de comentário feito por esse tratadista em De re rustica, VI, XXXII, 2, sobre a quantia de “betume, enxofre e heléboro misturados com pez líquido e banha velha”, os quais se mesclam em pesos iguais,81 já basta para dar-nos alguma indicação a respeito. Em contrapartida, quando Virgílio fala na simples mescla de “espumas de prata e enxofre vivo, pez do Ida e ceras viscosas, cebolas-albarrãs, heléboros fortes e o negro betume” em Geórgicas, III, 449-451, absolutamente nada de similar se tem.
Enfim, certas receitas são dadas de modo mais complexo, ou elaborado, em Columela do que em Virgílio. A título de exemplificação, veja-se como há mais tarefas de preparo, indicadas pelo próprio emprego de verbos de ação, na receita columeliana contra a sarna indicada em VI, XIII, 1:
Cunila bubula, et sulphur conteruntur, admistaque amurca cum oleo atque aceto incoquuntur. Deinde tepefactis scissum alumen tritum spargitur.83
Enquanto Virgílio, por um lado, recomenda o simples emprego tópico da amurca (contingunt, v. 448) e, por outro, a mistura (miscent, v. 449) de todos os ingredientes citados entre vv. 449 e 451, em um entorno compositivo no qual predomina a adjetivação enfática desses itens (veja-se, sobretudo, o caso de “negro betume” em v. 451), Columela fala em “pilar” (conteruntur) o orégano-de-vaca e o enxofre; depois, em cozer (incoquuntur) essa mistura com amurca, azeite e vinagre, que lhe são “juntados” (admista); enfim, em “espalhar” (spargitur) alúmen “desfeito e triturado” (scissum... tritum) sobre o todo. Desse modo, assim como dissemos antes ao comentar o maior detalhamento e funcionalidade das descrições anatômicas dos animais em Columela, em prejuízo da expressividade literária que se encontra, sobretudo, no livro III das Geórgicas, de novo, aqui, esses autores antigos fazem prevalecer tais tendências que em geral caracterizam sua escrita “agronômica”.
3. Conclusão sucinta
Os dados apresentados e discutidos nos dois subitens anteriores deste artigo devem ter bastado para fazer compreender que Virgílio, ao abordar o assunto dos animais domésticos no livro III das Geórgicas, e Columela, ao fazê-lo no livro VI de seu monumental De re rustica, não se comportaram como quem, monotonamente, repisasse o mesmo. Longe disso, cada um desses autores de “agronomia” soube dotar suas descrições zoológicas ou preceituações veterinárias de tons afinados ora com o caráter mais informativo e direto de um tratado – caso de Columela –, ora com as possibilidades expressivas menos cerradas, e mais sutis, de um poema didático – caso de Virgílio.
Dessa maneira, o contato com o legado da abordagem zoológica pela arte desses dois grandes, e diversos, mestres da Antiguidade romana propicia-nos amplas vias de acesso às variações construtivas possíveis no âmbito dos textos atinentes à “literatura agrária” dos latinos. E assim, ler Columela e Virgílio significa ainda hoje, para o eventual público interessado, não só um modo de inteirar-se dos mecanismos da cultura material antiga nos fundi rustici dos romanos, mas também uma forma de conhecer melhor sua rica e, por vezes, ainda pouco explorada literatura.